Desculpem a autorreferência, que é
vitupério - mas, estou terminando meu filme A Suprema Felicidade, que me tomou
três anos, entre roteiro, preparação e filmagem. Agora, sairá a primeira cópia.
Amigos me
perguntam: "Que é essa tal de A Suprema Felicidade? Onde está a
felicidade?" Eu penso: que felicidade? A de ontem ou a de hoje?
Antigamente, a
felicidade era uma missão a ser cumprida, a conquista de algo maior que nos
coroasse de louros; a felicidade demandava "sacrifício". Olhando os
retratos antigos, vemos que a felicidade masculina estava ligada à ideia de
"dignidade", vitória de um projeto de poder. Vemos os barbudos do
século 19 de nariz empinado, perfis de medalha, tirânicos sobre a mulher e os
filhos, ocupados em realizar a "felicidade" da família. Mas, quando
eu era criança, via em meus parentes, em minha casa, que a tal felicidade era
cortada por uma certa tristeza, quase desejada. Já tinha começado o desgaste
das famílias nucleares pelo ritmo da modernidade.
Hoje, a felicidade é uma obrigação de mercado. Ser deprimido
não é mais "comercial".
A infelicidade de hoje é dissimulada pela alegria obrigatória.
É impossível ser feliz como nos anúncios de margarina, é impossível ser sexy
como nos comerciais de cerveja. Esta "felicidade" infantil da mídia
se dá num mundo cheio de tragédias sem solução, como uma
"disneylândia" cercada de homens-bomba.
A felicidade hoje
é "não" ver. Felicidade é uma lista de negações. Não ter câncer, não
ler jornal, não sofrer pelas desgraças, não olhar os meninos malabaristas no
sinal, não ter coração. O mundo está tão sujo e terrível que a proposta que se
esconde sob a ideia de felicidade é ser um clone de si mesmo, um androide sem
sentimentos.
O mercado demanda uma felicidade dinâmica e incessante, cada vez mais confundida com consumo, como uma
"fast-food" da alma. O mundo veloz da internet, do celular, do
mercado financeiro nos obriga a uma gincana contra a morte ou velhice, melhor
dizendo, contra a obsolescência do produto ou a corrosão dos materiais.
A felicidade é
ter bom funcionamento. Há décadas, o precursor McLuhan falou que os meios de
comunicação são extensões de nossos braços, olhos e ouvidos. Hoje, nós é que
somos extensões das coisas. Fulano é a extensão de um banco, sicrano
comporta-se como um celular, beltrana rebola feito um liquidificador. Assim
como a mulher deseja ser um objeto de consumo, como um "avião", uma
máquina peituda, bunduda, o homem também quer ser uma metralhadora, uma
Ferrari, um torpedo inteligente, e mais que tudo, um grande pênis voador.
A ideia de
felicidade é ser desejado. Felicidade é ser consumido, é entrar num circuito
comercial de sorrisos e festas e virar um objeto de consumo. Não consigo me
enquadrar nos rituais de prazer que vejo nas revistas. Posso ter uma crise de
depressão em meio a uma orgia, não tenho o dom da gargalhada infinita, posso
broxar no auge de uma bacanal. Fui educado por jesuítas, para quem o sorriso
era quase um pecado, a gargalhada um insulto.
Bem - dirão vocês
-, resta-nos o amor... Mas, onde anda hoje em dia, esta pulsão chamada
"amor"?
O amor não tem
mais porto, não tem onde ancorar, não tem mais a família nuclear para se
abrigar. O amor ficou pelas ruas, em busca de objeto, esfarrapado, sem rumo.
Não temos mais músicas românticas, nem o lento perder-se dentro de "olhos
de ressaca", nem o formicida com guaraná. Mas, mesmo assim, continuamos
ansiando por uma felicidade impalpável.
Uma das marcas do
século 21 é o fim da crença na plenitude, seja no sexo, no amor e na política.
Se isso é um bem
ou um mal, não sei. Mas é inevitável. Temos de parar de sofrer romanticamente
porque definhou o antigo amor... No entanto, continuamos - amantes ou filósofos
- a sonhar como uma volta ao passado que julgávamos que seria harmônico. Temos
a nostalgia lírica por alguma coisa que pode voltar atrás. Não volta. Nada
volta atrás.
Sem a promessa de eternidade, tudo vira uma aventura. Em vez
da felicidade, temos o gozo rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do
amor; só restaram as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, motéis,
perdas, retornos, desertos, luzes brilhantes ou mortiças, a chuva, o sol, o
nada. O amor hoje é o cultivo da "intensidade" contra a "eternidade". O amor, para
ser eterno hoje em dia, paga o preço de ficar irrealizado. A droga não pode
parar de fazer efeito e, para isso, a "prise" não pode passar. Aí, a
dor vem como prazer, a saudade como excitação, a parte como o todo, o instante
como eterno. E, atenção, não falo de "masoquismo"; falo do espírito
do tempo.
Há que perder
esperanças antigas e talvez celebrar um sonho mais efêmero. É o fim do
"happy end", pois na verdade tudo acaba mal na vida. Estamos diante
do fim da insuportável felicidade obrigatória. Em tudo.
Não adianta
lamentar a impossibilidade do amor. Cada vez mais o parcial, o fortuito é
gozoso. Só o parcial nos excita. Temos de parar de sofrer por uma plenitude que
nunca alcançamos.
Hoje, há que
assumir a incompletude como única possibilidade humana. E achar isso bom. E
gozar com isso.
Não há mais
"todo"; só partes. O verdadeiro amor total está ficando impossível,
como as narrativas romanescas. Não se chega a lugar nenhum porque não há onde
chegar. A felicidade não é sair do mundo, como privilegiados seres, como
estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a trágica substância de tudo,
com o não sentido, das galáxias até o orgasmo. Usamos uma máscara sorridente,
um disfarce para nos proteger desse abismo. Mas esse abismo é também nossa
salvação. A aceitação do incompleto é um chamado à vida.
Temos de ser
felizes sem esperança. E este artigo não é pessimista...
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