Escravizar o outro, utilizando-o como mão de obra barata e
forçada, é uma prática muito antiga e comprovada ao longo da história. Desde a
construção das imponentes pirâmides do Egito, passando por outros impérios,
como Grécia e Roma, o ser humano sempre escravizou o outro em benefício
próprio. No Brasil a história não poderia ser diferente. Marcado pela
escravização negreira, a herança dos tombadilhos ainda açoita nossa realidade
com chibatadas tão fortes quanto aquelas sofridas pelos negros nas grandes
senzalas espalhadas pelo país. A diferença é que hoje a escravidão é velada,
aplicada de forma eufêmica, similar apenas nos maus tratos e na ausência de
direitos, como se a Lei Áurea tivesse ficado apenas no papel. Soberana a todas
estas, a escravidão econômica é a principal razão de os seres humanos ainda
serem subordinados animalesticamente pelo outrem, sobretudo numa nação que
marginaliza os mais pobres como a nossa.
No mesmo foco, falar em escravidão e não se lembrar dos
negros é o mesmo que fingir que a discriminação contra eles foi uma lenda no
país. Infelizmente, o sofrimento deles não foi suficiente para apagar as marcas
discriminatórias deixadas por uma cultura escravocrata. Hoje os negros ainda
amargam o dissabor dos tempos nefastos da escravidão e têm que lutar
triplicadamente para se firmarem no mercado. Eles ocupam cargos inferiorizados,
são marginalizados pela cor, modo de se vestir e até pela textura e corte de
cabelo. Também não são bem vistos quando o assunto é inclusão, principalmente
nas cotas, visto que nessa ocasião o discurso de que “todos somos iguais”
ressurge para minorar a entrada desse grupo nas academias do país. Felizmente,
casos como o do ministro do Superior Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, atual
presidente, mostra que uma pequena mudança tem acontecido a favor dessa classe
historicamente penalizada por um povo acostumado a segregar o “diferente”.
Recentemente também a mídia noticiou algo que comprova
práticas escravistas em pleno século XXI. Bolivianos eram obrigados a trabalhar
em fábricas de costura e não recebiam dignamente pelos seus serviços. Esse fato,
que ocorreu no estado de São Paulo, desmascarou um esquema nacional de
trabalhos forçados que não se limita apenas a região sudeste. No norte do país
infelizmente os imigrantes que adentram em terras nacionais são contratados por
fazendeiros que se aproveitam da ilegalidade dessas pessoas para obrigá-las a
cumprir exaustivas horas de serviço, muitas vezes com pouca ou nenhuma remuneração.
Exemplos desse porte assustam, pois não aconteceram no século XVII, mas
continuam a atormentar as pessoas mais fragilizadas sócio e economicamente na
modernidade. Condenados a pobreza, a esses indivíduos não resta outra opção se
não se submeterem aos métodos escravistas dos grandes latifúndios nacionais.
Parece que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade
da Revolução Francesa não chegaram ainda por aqui, a ponto de garantir a
dignidade de nativos e estrangeiros. Nesse sentido, não é só os imigrantes que
sofrem a duras penas com a escravidão moderna. Por aqui, em muitas áreas os
trabalhadores exercem suas funções com as semelhantes barreiras vividas em
1888. O PEC das empregadas domésticas reacende tal discussão em torno dos
direitos trabalhistas, principalmente das mulheres, bem como a escravidão
vivida por muitas delas. De gata borralheira à princesa, as antigas serviçais
podem contar com a carteira assinada e todas as garantias legais que isso pode
proporcionar. Entretanto, ofertar regalias as empregadas não tem sido bem visto
pela sociedade dominante. Esta postura de patrões e patroas denota que a nossa
sociedade, acostumada a subalternizar o ser, não foi educada a alforriar seus
“empregados”. Pelo contrário, em algumas casas, as domésticas serviam de forma
análoga às crioulas do período escravocrata brasileiro, sem direito a nada, a
não ser o de ficar caladas e de trabalhar, trabalhar, trabalhar...
Nesse sentido, a histórica escravidão dos mais carentes
formulou vários dizeres entre a população. O dito popular “manda quem pode,
obedece quem tem juízo” ganhou imensa motricidade na cultura nacional,
subalternizando todos aqueles que se equiparavam aos negros. Desse perfil
homens, mulheres, crianças e adolescentes, geralmente pobres e boa parte sem
instrução, traçaram o estereótipo braçal daqueles que deveriam apenas servir.
Por ter herdado muita coisa dessa época, o Brasil maquiniza o trabalho daqueles
que vivem à margem da sociedade. Numa nação abismaticamente desigual, onde a
discrepância entre os mais ricos e os miseráveis ganha distancias continentais,
é de se esperar que a esses últimos reste se sujeitar ao menosprezo dos
serviços mais desumanos possíveis. Sabendo dessa necessidade, muitos
empregadores endinheirados exploram desonestamente essas pessoas, pois contam
com a ignorância delas e com a ineficiência pública, a qual deveria proteger
tais cidadãos.
Sem o respaldo legal, muitos acabam servindo de marionetes
nas mãos de grandes empresários. E isso na esfera “legal” da coisa. Imagine então
quando a escravidão passa a ser plenamente ilegal. Nesse caso vale pontuar a
exploração de mulheres para a rede mundial de prostituição, um dos mercados
mais rentáveis do mundo. Carentes de uma vida melhor, muitas delas se iludem
com as falsas promessas de aliciadores e acabam sendo vendidas para o mercado
do sexo. Lá são abusadas, usadas e muitas vezes exterminadas. Isso acontece,
sobretudo com as jovens que vivem nas regiões mais pobres do país, já que a
condição de vida dessas garotas serve de instrumento nas mãos de cafetões para
seduzi-las a seguir suas perigosas orientações de fama e sucesso. A mídia
novelesca tem trazido à tona essa discussão, para que a sociedade fique alerta
e não deixe que outras vítimas sejam angariadas por esse mercado desumano e que
cresce em silêncio por todo o país. Mesmo assim, ela sozinha não é suficiente
para conter os desejos de mudança de vida dessas jovens que encontram nas
ofertas de trabalho no exterior a chance de transformar a própria realidade e a
dos famigerados familiares.
Além dessa escravização mercantilística do corpo, ressalta-se
também aquela que acontece dentro das nossas fronteiras. Crianças e
adolescentes são constantemente prostituídas em casas do gênero, nas ruas por
familiares e até mesmo na internet, local onde a sexualidade tem sido cada vez
mais negociada por valores altíssimos. Nessa atmosfera, a escravidão tem
acontecido em forma de bullying, o qual tem silenciado os aliciadores e
sentenciado os aliciados, muitos até a morte. Na realidade, vários capatazes
são os responsáveis por escravizar os jovens nos ambientes virtuais: os pais
por omissão ou descuido; o governo por falta de uma política que apreenda e
condene os reais algozes que vitimam a juventude pela internet e, deste último,
a falta de uma educação que esclareça os perigos das amarras desse ambiente cibernético
tão dicotômico que é a internet.
Todas essas práticas escravistas não se encerram por aqui.
Sabemos que muitas outras são sorrateiramente realizadas, desde os longínquos
terrenos e fazendas até os arranha céus das grandes metrópoles brasileiras. Ou
seja, de peões a empregadas domésticas, e outros que não foram destacados aqui,
o escravismos se faz presente, pois fomos educados a maquinizar o outro que
geralmente é carente de inúmeros recursos para sobreviver. Tudo isso mais uma
vez poderia ser atenuado se o debate clichê e enfadonho sobre a educação
ganhasse vez e voz na sociedade. É ela que irá desconstruir mais essa barreira
histórica da ignorância de um povo que continua segregando veladamente seu
semelhante. Enquanto não houver uma consciência educacional, nesse âmbito,
continuaremos a adestrar seres humanos como verdadeiras forças animais
irracionais. O Brasil não pode apagar da sua história o período negro da
escravidão, mas pode no mínimo deixá-lo no papel, evitando resgatar a opressão
vivida em tal época. Só assim as analogias serão desfeitas e a sociedade criará
uma relação harmônica entre patrões e funcionários, deixando a palavra
empregado fincada eternamente no passado.
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