24 abril 2013

Manda quem pode, obedece quem tem juízo.

 
Escravizar o outro, utilizando-o como mão de obra barata e forçada, é uma prática muito antiga e comprovada ao longo da história. Desde a construção das imponentes pirâmides do Egito, passando por outros impérios, como Grécia e Roma, o ser humano sempre escravizou o outro em benefício próprio. No Brasil a história não poderia ser diferente. Marcado pela escravização negreira, a herança dos tombadilhos ainda açoita nossa realidade com chibatadas tão fortes quanto aquelas sofridas pelos negros nas grandes senzalas espalhadas pelo país. A diferença é que hoje a escravidão é velada, aplicada de forma eufêmica, similar apenas nos maus tratos e na ausência de direitos, como se a Lei Áurea tivesse ficado apenas no papel. Soberana a todas estas, a escravidão econômica é a principal razão de os seres humanos ainda serem subordinados animalesticamente pelo outrem, sobretudo numa nação que marginaliza os mais pobres como a nossa.
 
No mesmo foco, falar em escravidão e não se lembrar dos negros é o mesmo que fingir que a discriminação contra eles foi uma lenda no país. Infelizmente, o sofrimento deles não foi suficiente para apagar as marcas discriminatórias deixadas por uma cultura escravocrata. Hoje os negros ainda amargam o dissabor dos tempos nefastos da escravidão e têm que lutar triplicadamente para se firmarem no mercado. Eles ocupam cargos inferiorizados, são marginalizados pela cor, modo de se vestir e até pela textura e corte de cabelo. Também não são bem vistos quando o assunto é inclusão, principalmente nas cotas, visto que nessa ocasião o discurso de que “todos somos iguais” ressurge para minorar a entrada desse grupo nas academias do país. Felizmente, casos como o do ministro do Superior Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, atual presidente, mostra que uma pequena mudança tem acontecido a favor dessa classe historicamente penalizada por um povo acostumado a segregar o “diferente”.
 
Recentemente também a mídia noticiou algo que comprova práticas escravistas em pleno século XXI. Bolivianos eram obrigados a trabalhar em fábricas de costura e não recebiam dignamente pelos seus serviços. Esse fato, que ocorreu no estado de São Paulo, desmascarou um esquema nacional de trabalhos forçados que não se limita apenas a região sudeste. No norte do país infelizmente os imigrantes que adentram em terras nacionais são contratados por fazendeiros que se aproveitam da ilegalidade dessas pessoas para obrigá-las a cumprir exaustivas horas de serviço, muitas vezes com pouca ou nenhuma remuneração. Exemplos desse porte assustam, pois não aconteceram no século XVII, mas continuam a atormentar as pessoas mais fragilizadas sócio e economicamente na modernidade. Condenados a pobreza, a esses indivíduos não resta outra opção se não se submeterem aos métodos escravistas dos grandes latifúndios nacionais.
 
Parece que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa não chegaram ainda por aqui, a ponto de garantir a dignidade de nativos e estrangeiros. Nesse sentido, não é só os imigrantes que sofrem a duras penas com a escravidão moderna. Por aqui, em muitas áreas os trabalhadores exercem suas funções com as semelhantes barreiras vividas em 1888. O PEC das empregadas domésticas reacende tal discussão em torno dos direitos trabalhistas, principalmente das mulheres, bem como a escravidão vivida por muitas delas. De gata borralheira à princesa, as antigas serviçais podem contar com a carteira assinada e todas as garantias legais que isso pode proporcionar. Entretanto, ofertar regalias as empregadas não tem sido bem visto pela sociedade dominante. Esta postura de patrões e patroas denota que a nossa sociedade, acostumada a subalternizar o ser, não foi educada a alforriar seus “empregados”. Pelo contrário, em algumas casas, as domésticas serviam de forma análoga às crioulas do período escravocrata brasileiro, sem direito a nada, a não ser o de ficar caladas e de trabalhar, trabalhar, trabalhar... 
 
Nesse sentido, a histórica escravidão dos mais carentes formulou vários dizeres entre a população. O dito popular “manda quem pode, obedece quem tem juízo” ganhou imensa motricidade na cultura nacional, subalternizando todos aqueles que se equiparavam aos negros. Desse perfil homens, mulheres, crianças e adolescentes, geralmente pobres e boa parte sem instrução, traçaram o estereótipo braçal daqueles que deveriam apenas servir. Por ter herdado muita coisa dessa época, o Brasil maquiniza o trabalho daqueles que vivem à margem da sociedade. Numa nação abismaticamente desigual, onde a discrepância entre os mais ricos e os miseráveis ganha distancias continentais, é de se esperar que a esses últimos reste se sujeitar ao menosprezo dos serviços mais desumanos possíveis. Sabendo dessa necessidade, muitos empregadores endinheirados exploram desonestamente essas pessoas, pois contam com a ignorância delas e com a ineficiência pública, a qual deveria proteger tais cidadãos.
 
Sem o respaldo legal, muitos acabam servindo de marionetes nas mãos de grandes empresários. E isso na esfera “legal” da coisa. Imagine então quando a escravidão passa a ser plenamente ilegal. Nesse caso vale pontuar a exploração de mulheres para a rede mundial de prostituição, um dos mercados mais rentáveis do mundo. Carentes de uma vida melhor, muitas delas se iludem com as falsas promessas de aliciadores e acabam sendo vendidas para o mercado do sexo. Lá são abusadas, usadas e muitas vezes exterminadas. Isso acontece, sobretudo com as jovens que vivem nas regiões mais pobres do país, já que a condição de vida dessas garotas serve de instrumento nas mãos de cafetões para seduzi-las a seguir suas perigosas orientações de fama e sucesso. A mídia novelesca tem trazido à tona essa discussão, para que a sociedade fique alerta e não deixe que outras vítimas sejam angariadas por esse mercado desumano e que cresce em silêncio por todo o país. Mesmo assim, ela sozinha não é suficiente para conter os desejos de mudança de vida dessas jovens que encontram nas ofertas de trabalho no exterior a chance de transformar a própria realidade e a dos famigerados familiares.
 
Além dessa escravização mercantilística do corpo, ressalta-se também aquela que acontece dentro das nossas fronteiras. Crianças e adolescentes são constantemente prostituídas em casas do gênero, nas ruas por familiares e até mesmo na internet, local onde a sexualidade tem sido cada vez mais negociada por valores altíssimos. Nessa atmosfera, a escravidão tem acontecido em forma de bullying, o qual tem silenciado os aliciadores e sentenciado os aliciados, muitos até a morte. Na realidade, vários capatazes são os responsáveis por escravizar os jovens nos ambientes virtuais: os pais por omissão ou descuido; o governo por falta de uma política que apreenda e condene os reais algozes que vitimam a juventude pela internet e, deste último, a falta de uma educação que esclareça os perigos das amarras desse ambiente cibernético tão dicotômico que é a internet.
 
Todas essas práticas escravistas não se encerram por aqui. Sabemos que muitas outras são sorrateiramente realizadas, desde os longínquos terrenos e fazendas até os arranha céus das grandes metrópoles brasileiras. Ou seja, de peões a empregadas domésticas, e outros que não foram destacados aqui, o escravismos se faz presente, pois fomos educados a maquinizar o outro que geralmente é carente de inúmeros recursos para sobreviver. Tudo isso mais uma vez poderia ser atenuado se o debate clichê e enfadonho sobre a educação ganhasse vez e voz na sociedade. É ela que irá desconstruir mais essa barreira histórica da ignorância de um povo que continua segregando veladamente seu semelhante. Enquanto não houver uma consciência educacional, nesse âmbito, continuaremos a adestrar seres humanos como verdadeiras forças animais irracionais. O Brasil não pode apagar da sua história o período negro da escravidão, mas pode no mínimo deixá-lo no papel, evitando resgatar a opressão vivida em tal época. Só assim as analogias serão desfeitas e a sociedade criará uma relação harmônica entre patrões e funcionários, deixando a palavra empregado fincada eternamente no passado.

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