16 dezembro 2012

Vampirofilia - por Marcia Tiburi


A vampirofilia de nosso tempo requer reflexão. Se as edições do clássico Drácula de Bram Stokerdisputam espaço nas estantes das livrarias com os vampiros de Laurell Kaye Hamilton, se o cinema que produziu Nosferatu de Murnau não se constrange com Drácula 2000, e se até mesmo séries de televisão e novelas surgem para agradar o gosto das massas sedentas por quem ameace sugar-lhes o sangue, é porque a imagem do herói predador cumpre uma função simbólica e imaginária fundamental. Certa paciência e alguma pipoca tornam fácil verificar que a história da representação de vampiros diz mais do ser humano do que sobre os próprios vampiros que, como qualquer mito, nascem da projeção humana.

A reflexão filosófica é uma espécie de pensamento que se pensa enquanto pensando sobre uma imagem. Guarda, portanto, a ideia de um espelho. Pensar nos vampiros tor-na-se um desafio interessante, pois um vampiro seria o impensável. Vejamos como. Uma das características destes personagens ficcionais é a de não refletirem em espelhos. Se vampiros não refletem é porque não podem virar imagens. Escapam assim de serem representações. Que não apareçam no espelho tem a ver com a ideia de que seriam em si mesmos e não mera imagem que se representa e que, portanto, possui uma interface projetiva como qualquer criação humana. A ficção do vampiro camufla seu personagem pelo metailusionismo de seu próprio conceito, sustentado no paradoxo do personagem cuja ficção onde ele é criado evita ela mesma que ele apareça como a ficção que ele de fato é. Ilude, assim, que ele seria o ápice de uma realidade e não, como costumamos pensar, a irrealidade. A ficção do vampiro mostra-nos que a irrealidade pertence a nós, a seres humanos que precisam inventar sentidos refletindo-se no espelho, representando-se portanto, para crerem em uma imagem que lhes dê garantia de existência. O vampiro não seria como um ser humano, mas, fruto da projeção humana, seria aquele que já encontrou um sentido inalcançável ao humano, pois ultrapassou o limite da morte.

E se o vampiro não pode aparecer no espelho é porque ele mesmo já é espelho. Aquele para o qual olhamos para saber quem somos. Assim é que o vampiro faz parte de uma espécie de máquina antropológica que diz e desdiz o que é um ser humano e funda assim desde sua performance estética até seu modo de comportar-se. Ela define também quem pode viver e quem pode morrer.

Anômalo
Esta máquina constrói e desconstrói a identidade humana apresentando novas modalidades de vampiros. Assim como podemos dizer que vivemos em tempos pós-humanos desde que a história como atividade narrativa do passado está em crise, podemos também pensar que nossos tempos são para pós-vampiros. Os vampiros “vegetarianos” da série Crepúsculo, da escritora americana Stephenie Meyer, mostram muito bem a condição pós-vampírica do ser assassino e sedento no qual o ser humano projetou o seu desejo de sugar o sangue e, assim, a vida do outro. Seres humanos amam vampiros por puro amor a si mesmos. A ideia é um pouco bizarra, mas vale a pena ser analisada para que se entenda a função contemporânea do mito na chave do narcisimo contemporâneo. Enquanto o vampiro de Stephanie Meyer como que diz “sou vampiro, mas gostaria de ser humano”, o ser humano, que adora esta frase na boca de um vampiro, poderia muito bem dizer “sou humano, mas gostaria de ser vampiro”. O personagem ajuda o ser humano a encontrar outro papel. Como projeção, a ideia vem dizer que há um vampiro em nós como desejo de ser vampiro e há em nosso vampiro interno uma culpa que nos faz querer ser humanos. A relação entre Edward Cullen, o lindo protagonista deCrepúsculo, e a esquiva Bella é exatamente esta.

O casal encanta sua geração porque mostra nele a realização de um ideal relativo ao desejo humano que jovens no limbo existencial gostariam de realizar. O vampiro se humaniza ao não atacar a moça, a moça sem preconceitos – e, claro, perdida de amores pelo superpartido que ele é – vê no vampiro a chance de se tornar vampira. Na delicada Bella vemos a nós mesmos, que, ainda humanos, não valorizamos a vida simplesmente humana que o vampiro valoriza, mas muito mais o amor e a promessa de eternidade que ele vem oferecer. O casal é o paradigma do modo como adolescentes compreendem hoje o amor. Ou gostariam de compreendê-lo. Não é exagerado dizer que Edward é o espelho de uma geração que teria no amor a ideia do reconhecimento recíproco. Ele é muito menos um vampiro do que um adolescente em conflito com a sua própria natureza. Ele é muito mais um ser humano que se entende como anormal, o portador de uma “anomalia” inscrita em seu corpo e não em seu desejo. Ele é, ainda que em seu estilo shopping center, um elogio da diferença. Rendido de sua anormalidade pelo amor de uma adolescente que não o vê enquanto monstro, ele recebe o reconhecimento como reconciliação com sua natureza. A dimensão conflituosa da existência de Edward permite pensar uma inversão: ele está inscrito na condição humana. Sua namorada inscrever-se-á na condição vampira. Nestes tempos pós-humanos o sucesso dos vampiros está em que nunca fomos tão próximos, por meio deles, de nossa própria natureza.

O gelo da paixão 
Nada mais exato para explicar a paixão do que um vampiro e seu radical poder predatório. Render-nos-emos a ele pelo simples fato de que ele representa a coisa à qual alguém se rende. A própria terminologia da palavra pathos afirma o poder de algo externo ao qual alguém é sujeitado. Estar apaixonado é estar capturado pelo outro. Na paixão sou presa do sentido do outro, o sentido que ele me oferece por ser portador de um sentido maior do que o meu. Ele tem a garantia para toda a minha angústia narcisista, para toda a falta que posso sentir em minha vida enquanto sou um ser romântico, que é sempre vítima em potencial. O vampiro só ataca um romântico, quem inseguramente vive a condição existencial como espera por complemento, ou por companhia. Para alguém que vive a partir de uma falha relativa à própria existência seria impossível não apaixonar-se pelo resgate existencial que o vampiro vem trazer.

Daí que o vampiro seja um misto de Hermes, um mensageiro, e de Prometeu acorrentado. Vem informar ao ser humano sua dimensão divina ao se deixar levar pelo amor que apenas um “doce vampiro” pode representar. Vem ensinar que o amor é coisa animal e ao mesmo tempo coisa espiritual. Vem mostrar ao ser humano um fogo tão essencial como o do conhecimento com que um dia Prometeu presenteou os homens, o fogo da paixão. Mas, diferente de um amor caloroso, afetuoso em que o corpo aquecido se realizaria, o “fogo da paixão”, com que nos acostumamos a expressar-nos, é transmitido pelo vampiro pela frieza de seu corpo morto. Neste sentido, o fogo da paixão que interessa ao nosso tempo é mediado pelo frio da idealização. O amor idealizado é uma doença da razão que, ao idealizar, cai na metafísica e perde seu limite. O vampiro é uma fantasia dessa razão. Esta paradoxal frieza da paixão encanta os vampirofílicos de hoje, apenas porque são também, enquanto românticos, masoquistas. Apaixonam-se pelo amor frio e cruel que apenas uma alta dose de idealização do objeto amado pode garantir.

A primeira versão romântica do vampiro, o Drácula de Bram Stoker, deixa claro que o poder do vampiro é não apenas a manutenção da vida, mas a manutenção do amor eterno, um amor que é, ele mesmo, análogo da vida, morto e vivo, sustentado por algo mais forte do que a vida, que é a própria morte, a eternidade. O amor total é vivo enquanto morto, morto enquanto vivo. A promessa do vampiro é, pois, a da imortalidade acompanhada de muito sexo, muito sangue, de uma vida como total aventura, mistério e sedução. A vida do vampiro é ideal. Ele passeia na história assistindo às transformações, à morte dos outros, em contraposição à imutabilidade de seu próprio corpo mantido sempre na mesma idade. O vampiro é ideal como presença do atemporal no tempo, a vida dentro da morte. O vampiro faz a morte parecer um tempo divertido. Ele a transforma em eternidade. Quanta aventura e quanta aprendizagem, e, mesmo que em algum momento o vampiro seja acometido de qualquer forma de taedium vitae, quanta alegria de viver em troca de um pouco de sangue retirado de vítimas sempre representadas como meros corpos, meros viventes cujo valor simbólico é nulo: moças bobas, doentes, mendigos, pessoas comuns. O vampiro impera como uma vida não viva, que não se mistura com a mera vida. É uma vida acima da vida. Por isso, ele nunca ataca personagens importantes que com ele disputariam o espaço de um poder místico. Já a vida meramente viva não vale o sangue que representa o sentido transcendente da imortalidade. Astro da metafísica negativa de nosso tempo, não há chance de que venhamos a esquecê-lo tão cedo.

Visto na: Revista Cult

Nenhum comentário:

Postar um comentário