Texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum
Social Mundial 2002
Começarei por vos contar em brevíssimas
palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores
de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção
para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é
corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do
relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda. Estavam os habitantes nas suas casas
ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados,
quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos
(estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes
ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém
aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente,
uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de
passamento.
Saíram portanto as mulheres à rua,
juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mestres, e em
pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes
dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais,
finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia
no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o
sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o
sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o
sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu
ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que
tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça
está morta."
Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à proteção da justiça. Tudo sem resultado, a espoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exato tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem exceção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada.
Um clamor tal, voando de casa em casa,
de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras,
lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar
o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular
foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos,
uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de
cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que
a História nunca nos conta tudo... Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma
campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres
humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre
dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos
os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à
porta da nossa casa, alguém a está matando.
De cada vez que morre, é como se afinal
nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que
dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça,
simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde
com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os
olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais
para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça
companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exato
e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável
à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma
justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse
a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da
própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um
iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser
humano assiste. Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam.
Tocavam também para assinalar as horas
do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um
tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o
povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a
qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos
encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado
do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior
ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje
defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela
justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do
espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do
próprio alimento do corpo.
Houvesse essa justiça, e nem um só ser
humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns,
mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais
de metade da humanidade, a condenação terrível que objetivamente tem sido.
Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o
mundo são os múltiplos movimentos de resistência e ação social que pugnam pelo
estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os
seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protetora
da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que
para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer
compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos
na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas trinta direitos básicos e
essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se
silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há
quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença.
E também tenho dito que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem
necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem,
no que respeita a retidão de princípios e clareza de objetivos, os programas de
todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda,
anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as
realidades brutais do mundo atual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis
ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e
sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.
Acrescentarei que as mesmas razões que
me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico
por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical
internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e
burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável
pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização econômica em
curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me
autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La
Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos
direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da
globalização econômica.
E a democracia, esse milenário invento
de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias
sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um
governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a
pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de
benignidade tem interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível
o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será
precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades
teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos
humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efetivamente democrático o
sistema de governo e de gestão da sociedade a que atualmente vimos chamando
democracia. E não o é.
É verdade que podemos votar, é verdade
que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como
cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos
representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de
tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma
maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é
igualmente verdade que a possibilidade de ação democrática começa e acaba aí. O
eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu
lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível
sobre a única e real força que governa o mundo, e, portanto o seu país e a sua
pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder econômico em particular à parte dele,
sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com
estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por
definição, a democracia aspira.
Todos sabemos que é assim, e, contudo,
por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez
crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo
vivo e atuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas
ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E
não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos
governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando
cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico,
com a objetiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para
depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada,
serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo
os certas conhecidas minorias eternamente descontentes...
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo. Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário