Gilberto Dimenstein* – Cidade sem catracas
A qualidade de uma cidade se mede pelo tamanho de suas calçadas. Nunca mais tirei essa frase da cabeça depois que a ouvi de um urbanista.
Sempre tive um enorme prazer em flanar pelas cidades, sem guias nem roteiros, apenas pelo gosto de descobrir novidades, como se eu fosse um menino brincando de caça ao tesouro. Algumas das imagens mais fortes que surgem de Roma, Paris, Nova York, Amsterdã ou Londres não são seus pontos turísticos obrigatórios – mas as emoções nascidas das pequenas descobertas do flanar.
Nasci em São Paulo, onde, menino, brincava nas ruas e, despreocupado, fazia caminhadas pelo centro. Naquele tempo, o centro parecia um parque de diversão, com seus cinemas, teatros, livrarias, sebos, praças alegres. Meu pai tinha uma loja nas redondezas, um porto seguro.
As calçadas são, porém, um símbolo de convivência. O desaparecimento das calçadas paulistanas, devoradas pelos automóveis, é reflexo da forma de perceber o cidadão em seu território. Está aí, em essência, a cidadania. Há toda uma carga ideológica, muito mais do que uma simples questão de trânsito, a prioridade ao automóvel – é o sinal de que o individual suplanta o coletivo.
A cidade deixa de gerar o senso de pertencimento. Não provoca identidade. Tudo está em permanente destruição da memória. Isso se traduz em ressentimento e o ressentimento em falta de cuidado. Se tivéssemos de criar um manual sobre como não cuidar de uma cidade, São Paulo seria um caso perfeito. O resultado está aí: as pessoas trancadas em seus carros, nas suas casas, nos condomínios, nos shoppings. Todos estão cercados por catracas. É a modernidade dentro da barbárie urbana.
Quem pode, sai correndo o mais rapidamente. Nos finais de semana, corre para a praia ou campo. Outros preferem pichá-la dos mais diferentes jeitos – as letras nos prédios são as mais visíveis.
Minha visão de cidade é mesmo a das calçadas largas. Mas não são apenas as de concreto. Civilidade é permitir o máximo possível o encontro e a aprendizagem. Grandes cidades são aquelas que se transformam em comunidades de aprendizagem, onde aprendemos em todos os lugares, a começar da rua. Não é por acaso que o apogeu de um país está associado a cidades que exibem efervescência cultural. E os arquitetos, intuitivamente, tentam moldar a cidade ao encontro coletivo.
É o que vemos desde as praças atenienses. Justamente por isso, quando se criou a Virada Cultural, naturalmente se arquitetou a ocupação das ruas em São Paulo – e, em especial, das ruas do centro. O grande valor das grandes cidades é esse de colocar os talentos aprendendo e compartilhando. Daí ser um pólo de atração dos inovadores e transgressores. A renascença precisava de uma Florença, o jazz de Nova York, o rock de Londres, a psicanálise de Viena, o cubismo de Paris, a bossa nova do Rio, a semana de arte moderna de São Paulo, o tango de Buenos Aires. Na era da informação, as calçadas têm mais um significado especial. E, para mim, o mais importante dos significados: a cidade educadora. Imagina-se, em geral, que o papel de educar é das escolas e da família.
A cidade educadora amplia esse conceito – e, aí, misturam-se educação, cultura, formando uma única linguagem, colada pelas novas tecnologias de comunicação. Museus, empresas, escolas, universidades, praças, parques, bibliotecas, cinemas, teatros, salas de concertos. Aprende-se em qualquer lugar e a qualquer hora. O espaço público não ameaça, congrega. Não violenta, ensina. Não afasta, aproxima. Não produz muros, produz jardins. Daí que, nos últimos 13 anos, tenho participado, em São Paulo, da experiência do bairro-escola, comandado pela Cidade Escola Aprendiz, desenvolvida inicialmente na Vila Madalena. A ideia, singela, é de que o bairro seja uma extensão da casa – e o bairro e a casa sejam uma extensão da escola.
Está aí minha utopia: uma cidade sem catracas.
*Gilberto Dimenstein é, na atualidade, um dos jornalistas brasileiros de maior renome internacional. Ganhou os principais prêmios destinados a jornalistas e escritores, como o Prêmio Nacional de direitos Humanos e o Prêmio Criança e Paz do Unicef. Também foi agraciado com a Menção Honrosa da Faculdade de Colúmbia, em Nova York. Com O cidadão de papel, obteve uma premiação inédita para um livro educativo, considerado, em 1994, a melhor obra de não-ficção pelo Prêmio Jabuti. Ele é criador e coordenador pedagógico da Cidade Escola Aprendiz, um laboratório de inovações pedagógicas em São Paulo, indicado pela Unesco como referência mundial de inclusão social pela educação. Atua como colunista e membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo e como da CBN.
Por Blog Acesso
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