30 novembro 2010

Écloga Crisfal


INTRODUÇÃO

Quando em maio de 1908 tornou-se pública a conclusão a que havia chegado de ser Crisfal um pseudónimo do autor da Menina e moça, com a intenção de demonstrar no volume recentemente dado á estampa: Bernardim Ribeiro (O Poeta Crisfal), tinham o convencimento pleno de que tal nova, divulgada pela imprensa, seria bem acolhida por quantos se interessam pelo estudo da História literária.

Por isso, este trabalho se destina a trazer à luz da temática clássica a vida e obra de um grande nome da poesia desse período: Cristóvão Falcão, possível autor da famosa Écloga Crisfal. Sob o prisma dos elementos do classicismo português serão discutidos os fatores conteudisticos que constituem essa obra, bem como a relação dela com o autor e o momento literário pelo qual foi encandeada a poeticidade da Écloga.

CRISTÓVÃO FALCÃO

Poeta português, natural de Portalegre, supondo-se de ascendência aristocrática e educado na corte portuguesa. Cedo se encontrou envolvido numa complicada situação que o levaria à prisão, por se ter apaixonado por uma jovem com a qual lhe era impossível casar, dado não ter fortuna pessoal. Posteriormente libertado, após o casamento da jovem, entretanto encerrada num convento, foi enviado a Roma por D. João III, numa missão diplomática.

Cristóvão Falcão é considerado o autor mais provável da écloga Trovas de Um Pastor por Nome Crisfal, mas essa autoria permanece ainda hoje como um dos mistérios da história da literatura portuguesa. A écloga, que narra os amores e as desventuras do pastor Crisfal e da pastora Maria, aparece publicada pela primeira vez na edição de 1554 da Menina e Moça de Bernardim Ribeiro, saída em Ferrara, e acompanhada da seguinte epígrafe: «Écloga de Cristóvão Falcão chamada Crisfal».

Existem várias teses que tentam explicar a autoria da écloga e a biografia do seu autor. Uma dessas teses defende que a autoria da écloga pertence realmente a um Cristóvão Falcão, até pelo seu título, «Crisfal», criptónimo que esconde a identidade do autor e que não é mais que a junção das sílabas iniciais de Cristóvão e Falcão. Para corroborar esta hipótese levantam-se os argumentos de Gaspar Frutuoso, Diogo do Couto, Faria e Sousa e António dos Reis. No entanto, desconhece-se se estes mesmos autores não seriam também eles o eco de uma tradição já lendária.

Há quem defenda, como Delfim Guimarães, que a sua autoria pertence a Bernardim Ribeiro, havendo outros autores que a atribuem a autor desconhecido. Mas a hipótese que parece mais provável é a de ser Cristóvão Falcão o seu autor, até pelas discrepâncias com o estilo de Bernardim Ribeiro. Quanto aos aspectos biográficos, para além dos já mencionados, dos quais, aliás, não há provas seguras, sabe-se ainda que houve um Cristóvão Falcão governador de Arguim.

A escrita de Crisfal poderá estar ligada, conforme vem referido numa carta em verso escrita muito provavelmente pelo autor da écloga, à sua paixão por Maria Brandão. Qualquer que seja a sua autoria, as Trovas de um Pastor por Nome Crisfal, misto de narrativa e poema lírico, são ainda hoje das mais belas páginas bucólicas que a literatura portuguesa produziu.

Écloga (ou ÉGLOGA)

Poema em forma de diálogo ou de solilóquio sobre temas rústicos, cujos intérpretes são em regra pastores. Inicialmente, o termo, que significava "poesia seleccionada", foi aplicado aos poemas bucólicos de Virgílio. A partir daí, aplica-se às pastorais e aos idílios tradicionais que Teócrito e outros poetas sicilianos escreveram. Outros poetas italianos como Dante, Petrarca e Boccaccio recuperaram o género, que acabaria por se tornar um dos preferidos dos poetas renascentistas e maneiristas europeus. A grafia égloga, popularizada por Dante, parte de uma falsa etimologia latina que derivava de aix ("cabra, bode") e logos ("palavra", "discurso", "diálogo"). De acordo com o comentário irónico do poeta inglês Spenser, em "E. K.", terá sido construída para significar qualquer coisa como "Goteheards tales" ("contos de cabreiros").

Luís de Camões, Bernardim Ribeiro, António Ferreira e Sá de Miranda estão entre os muitos poetas portugueses que nos legaram poemas do género. As suas composições seguem os modelos clássicos, não existia até então qualquer teorização portuguesa sobre as éclogas. A rigor, nem os modelos clássicos (Horácio e Diomedes) teorizam em particular sobre a écloga. O que sabemos sobre as regras da écloga advém dos próprios textos. No caso português, só em 1605 Francisco Rodrigues Lobo teoriza sobre o assunto em Discurso sobre a Vida e o Estilo dos Pastores (1605). Os poetas árcades do século XVIII ainda exploram o género tendo mesmo teorizado sobre a écloga, como Dinis da Cruz e Silva. Um dos melhores intérpretes da écloga nesta época é João Xavier de Matos, destacando-se Albano e Damiana (1758).

A écloga clássica parte quase sempre de um quadro idílico, o locus amoenus ou lugar aprazível, e desenvolve com certa brevidade o louvor de uma pessoa, por razões sentimentais, reflecte sobre a condição do poeta e/ou da própria poesia, ou entretém-se com subtilezas políticas ou religiosas. Outro tema clássico das éclogas é o da libertação espiritual, a renúncia aos bens terrenos e sociais para uma total entrega à natureza e aos mais puros ideiais de vida perseguindo a chamada aurea mediocritas. O longo poema de Sá de Miranda conhecido por "Écloga Basto" ilustra este desejo: "Quando tudo era falante / pascia um cervo um bom prado ...".

ÉCLOGA CRISFAL

Écloga editada primeiro anonimamente e posteriormente reeditada em 1554 em conjunto com as obras de Bernardim Ribeiro, na edição de Ferrara. Crisfal é o nome de uma personagem dessa écloga cuja verdadeira autoria é ainda hoje desconhecida. Segundo o editor da edição de Ferrara, seria Cristovão Falcão, pelo fato de o título ser formado das primeiras sílabas do nome e sobrenome do poeta: Cris(tovão) Fal(cão). Autores há que perfilham essa opinião; outros, porém, recusam-na e atribuem a autoria a Bernardim Ribeiro.

É evidente a semelhança entre Crisfal e Menina e Moça, deste último autor. Começa por uma introdução orientando a composição; segue-se um monólogo de Crisfal, o pastor, que dá lugar a uma longa narrativa dos acontecimentos de que foi ator durante um sonho: viaja do Alentejo Litoral até Lorvão; antes de encontrar a amada, a pastora Maria, são narradas a história de Natónio e Guiomar e a história de uma mal-maridada; no fim, o autor retoma a sua voz para concluir. Trata-se, pois, de uma écloga novelesca onde se misturam narrativa e lirismo.

CARACTERISTICAS DA ÉCLOGA CRISFAL

Esta é a obra mais conhecida de Cristóvão Falcão, a ponto de se confundir com o nome do autor. É provável que Crisfal seja um criptónimo de Cristóvão Falcão.

Crisfal, Chrisfal ou Trovas de Crisfal, é uma écloga (poema pastoral) com 1015 versos (no texto do folheto publicado por Oliveira Santos e editado por Cohen; vide infra) que conta a história dos jovens pastores Maria Brandão e Crisfal, que se amam desde a infância, mas são separados porque os pais da jovem a levam para um lugar distante.

Escrito em harmoniosa redondilha maior, é talvez o mais expressivo exemplo da adaptação da poesia bucólica grega e latina à sensibilidade portuguesa». É um poema impregnado de saudade, de emoções ternas e puras, glorificadas em versos escritos numa linguagem directa, mas de timbre requintado, onde perpassa uma sensualidade picante e um realismo por vezes atrevido. A obra colocou o Cristóvão Falcão numa posição única na literatura portuguesa e teve uma influência considerável em poetas posteriores, nomeadamente Camões.

ELEMENTOS CONTEUDISTICOS

1
Antre Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábeda é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n'água salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor
se amarom
como males lhe causarom
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidarom.

2
A ela chamavam Maria
e ao pastor Crisfal,
ao qual, de dia em dia,
o bem se tornou em mal,
que ele tam mal merecia.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam,
que o dia que não se viam,
se viam na saudade
o que ambos se queriam.

3
Alguas horas falavam,
andando o gado pascendo,
e então se apascentavam
os olhos, que, em se vendo,
mais famintos lhe ficavam.
E com quanto era Maria
piquena, tinha cuidado
de guardar milhor o gado
o que lhe Crisfal dezia;
mas, em fim, foi mal
guardado;

4
Que, depois de assi viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem pera mor dor,
em fim se houve de saber
por Joana, outra pastora,
que a Crisfal queria bem;
(mas o bem que de tal vem
não ser bem maior bem fora,
por não ser mal a ninguém).

5
A qual, logo aquele dia
que soube de seus amores,
aos parentes de Maria
fez certos e sabedores
de tudo quanto sabia.
Crisfal não era então
dos bens do mundo abastado
tanto como do cuidado;
que, por curar da paixão,
não curava do seu gado.

Será ainda possível o arrebatamento estético pela linha do exotismo regional? E que espécie de exotismo resistirá depois que a globalização pôs o mundo todo à nossa disposição? Ali, à exacta distância de um clique? É – responderei –, pese embora o termos que procurá-lo em dois tempos (im) possíveis: no passado ou, mais esforçadamente, no futuro. Que quem o quiser no amanhã, outro remédio não tem, senão descobri-lo na literatura de antecipação, a ficção científica. E quem o preferir pretérito, há-de recorrer às matrizes originais, subterradas no passado, como na Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, ou na Crisfal, de Cristóvão Falcão, por exemplos.

Depois, como a irremediabilidade característica que assiste ao inevitável, constatar-se-á que o discurso literário actual nasceu da narrativa oral, e que a nossa história antes de escrita foi falada até nos fadar naquilo que somos. De quanto nele é possível observarmos o palimpsesto da oralidade, de tal modo, que apetece lê-lo em voz alta só para nos ouvirmos dizendo-a, à medida que a vamos vivendo. Cair na magia da palavra dita, sussurrada ao canto da lareira, sob o dançar fantasmagórico das sombras que as chamas activam e despertam. Que era como se refazia o sonho, se transmitia a moral, os costumes e as ideias, se compunha a noção de beleza e de liberdade, dando-lhe por cercadura os lintéis da vontade, dos valores, da honra, afecto e glória. Porque era com eles, que as gentes edificavam as portas prà vida, com que os homens eram esculpidos, talhados, determinados, programados, no heroísmo de sobreviverem sendo felizes. E fieis. Principalmente fiéis, ao seu amor, ou à sua rainha – deusa, dirão alguns, a quem a veia mística ainda não fez perder o tino.

Porque das éclogas se conta pouco, quando foi muito o seu cantar, neste recanto onde o pastoreio se fez, sobretudo, com rebanhos do sonhar. E, "no que toca à substância das ideias, ao temperamento", afiança Rodrigues Lapa, "aquela espécie de pudor que se nota nas éclogas de Bernardim Ribeiro, deu lugar, no Crisfal, a uma sensualidade picante, dum realismo por vezes atrevido. Em meio dos seus queixumes e desfalecimentos, sentimos que Crisfal é um homem que luta e sabe gozar a vida." Alguém de Portus Alacer.

Ficando, adianta ele no seu prefácio, "pois demonstrado, sem sombra de dúvida, a nosso ver, que foi Cristóvão Falcão de Sousa, fidalgo de Portalegre, o autor da écloga Crisfal e da carta em verso. As outras hipóteses apresentadas, em torno da questão, não têm fundamento, uma, de Patrocínio Ribeiro, formulada em 1917, pretendeu ver no poema uma composição de Luís de Camões, e no entrecho a narração dos amores de Jorge Silva pela infanta D. Maria. É um produto daquela imaginação delirante, que estraga muitas vezes o crítico em Portugal. A outra, apresentada em 1940 pelo professor António José Saraiva, supõe o Crisfal como composto por Bernardim Ribeiro, em torno dos amores de Cristóvão Falcão.

Além de tudo quanto se tem dito sobre as circunstâncias da vida e particularismos de estilo, não é razoável figurarmos um homem como Bernardim, já velho, torturado pelo seu drama pessoal, de que só sabia falar, metido a celebrante de amores escandalosos de um rapaz. Isto “admitindo mesmo que Bernardim Ribeiro estivesse em estado mental de fazê-lo, o que era duvidoso.” Por mim, confesso-me suficientemente elucidado. Quanto aos demais, experimentem lê-los, a ambos, e depois avaliem sobre a justeza desta paternidade.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O AUTOR E OBRA

Fidalgo e poeta do século XVI, de seu nome completo Cristóvão Falcão de Sousa. Filho de João Vaz de Almada Falcão, cavaleiro com fama de grande honradez, que serviu como capitão da Mina, e de D. Brites Fernandes. Teve dois irmãos, Barnabé de Sousa e Damião de Sousa. Em 1527 era morador na Casa Real.

Sendo ainda mancebo apaixonou-se por uma moça, mais nova do que ele, que não tinha idade canónica. Casou clandestinamente e a esposa foi enviada para o convento de Lorvão e ele encarcerado por intervenção do seu pai. Saído do cárcere, D. João III confiou-lhe uma missão particular, ligado ao caso do bispo de Viseu, D. Miguel da Silva, que fugira de Portugal em 1540 contra vontade do rei, dirigindo-se a Roma, para o Papa lhe conceder o cardinalato. Para punir o bispo, o monarca pensou em utilizar a influência do embaixador de Carlos V na corte pontifícia, o marquês de Aguilar, de quem Cristóvão Falcão era primo.

Regressado de Itália foi despachado, a 31 de Março de 1545, como capitão para a fortaleza de Arguim, na ilha da costa da Guiné, onde havia uma feitoria destinada ao comércio com o interior de África. Supõe-se que veio a casar com Isabel Caldeira. Desta mulher não teve filhos, mas da outra teve um bastardo com o mesmo nome, que veio a exercer as funções de capitão da Madeira.

CONCLUSÃO

As considerações retratadas nesse trabalho serviram unicamente para enaltecer a poesia do classismo, bem como as contribuições que esta deixou na cultura poética da pós-modernidade. Além disso, foi trazido á tona o nome de poetas como Cristóvão Falcão, ainda desconhecido em sua essência literária.

Dessa forma, espera-se que os conhecimentos aqui dispostos sirvam para que pesquesas mais aprofundadas surjam no que tange a temática clássica e todo o seu rico legado para a poesia moderna. Da mesma forma, que os autores desse período sejam enaltecidos e estudados, para que a humanidade sinta a poeticidade das palavras dos artistas que compuseram esse rico periodo da literatura portuguesa.

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