"Dizer que uma escola de samba
sambou na cara da sociedade é um trocadilho que merece ter seu pleonasmo
perdoado. A transgressão na linguagem aqui está a serviço de algo maior. A
Estação Primeira de Mangueira trouxe para a avenida um enredo certeiro: "A
História que a História não Conta", do carnavalesco Leandro Vieira. Numa
época de apagamento e deturpação dos registros históricos - como ocorreu com o
"incêndio" ao Museu Nacional e os ecos ignorantes em torno da volta à
Ditadura Militar - é magnífico exaltar através do carnaval a verdadeira
história do Brasil.
Dessa vez, a perspectiva era dar voz
aos historicamente emudecidos: índios, negros e pobres. As maiores minorias do
país ganharam a merecida representatividade frente a esse governo escatológico
(o twitter está aí de testemunha), que tenta minar a arte, cultura e a educação
do seu fazer crítico e reflexivo. Inclusive, antes do sambódromo sambar na face
do preconceito, as ruas já traziam sua insatisfação ao atual governo branco,
elitista e agrário, por meio dos blocos que bradavam: "Bolsonaro é o
CARALHO!". Na avenida do samba, tão eficiente quanto às ruas, a Mangueira
trouxe fundamentação à crítica dos poucos pensantes que ainda restam na nação.
O carnavalesco consultou escassas
fontes históricas para trazer ao sambódromo o Brasil que muitos de nós
desconhece e que a direita ultraconservadora luta para que seja esquecido. Para
além do "Agro é tec, Agro é pop, Agro é tudo", a mangueira começa seu
desfile dizendo que a nação é dos índios, e que a intervenção europeia deturpou
a imagem desses brasileiros ao ponto de acharmos natural o seu massacre de
outrora e de agora. Para contar a história negra, ícones emblemáticos como O
Navio Negreiro, Dandara e o quilombo de Zumbi dos Palmares foram enaltecidos. A
pobreza desfila decorrente de todo o legado deixado pela exclusão dos indígenas
e da negritude, renegando-os aos guetos e a morte iminente.
Mulheres incríveis também foram
citadas como Zuzu Angel e Marielle Franco. Aliás, na comissão de frente, a
Mangueira já trazia o tom do lacre que estava por vir, ao retratar a pequenez
dos pseudos heróis nacionais frente a agigantada história indígena e negra no
Brasil, tão pouco difundidas. A faixa escrito "PRESENTE" em letras
garrafais não se tratava apenas de uma menção a Marielle. Era um aviso aos
ditadores de plantão que subliminarmente devia ser lida como: "ESTAMOS
AQUI!". E estamos mesmo! Nossa posição na corda não está mais no lado mais
fraco, e a Estação Primeira confirma isso ao desconstruir as mentiras sobre o
povo que construiu o Brasil.
De salto quinze, a Mangueira recria a
bandeira nacional trazendo as palavras de ordem mais emergenciais do momento:
Índios, Negros e Pobres nas cores verde e rosa, já que o verde, amarelo, azul e
branco não representam nossa pátria como um todo. Foram tantos pisões na
avenida do samba que o espectador mais atento ficou facilmente sem fôlego. Foi
um desfile, antes de tudo, corajoso nesta era de covardia e dissonância nos
discursos. Uma prova de que a arte pode, e deve, ser um instrumento contra a
tirania do preconceito, bem como o avanço da irreflexão na sociedade.
Porém, mais que isso, um recado as
sandices políticas que tentam apagar a história de uma nação marcada pela
intolerância. A Mangueira pisoteou a cara de muitos destes canalhas que se
apossaram do poder e querem reescrever a história através do medo. Que outras
escolas de samba, mídias televisivas, artistas em geral, aproveitem esse embalo
e façam artes engajadas em denunciar as mentiras que nos ensinaram como
verdades. Sambar na cara da sociedade apenas no carnaval é insuficiente.
Precisamos sambar também o ano todo. A Mangueira fez a sua parte, falta
você."
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