21 março 2011

Estudo diz que o transexualismo não é associado à personalidade psicótica.



A associação foi elaborada por psicanalistas que se pautavam na teoria do francês Jacques Lacan (1901-1981) desenvolvida nos anos 1950. A perda da noção da realidade do corpo faria com que um homem se visse como mulher e vice-versa. O novo estudo, porém, demonstra que a vontade de ser do sexo oposto não implica necessariamente uma patologia ou uma disfunção de percepção da aparência, mas apenas atesta a singularidade de algumas pessoas. Muitas vezes, o transexual aceita seu corpo, mas se porta como o sexo oposto.

O psicólogo e psicanalista Rafael Cossi, autor do estudo, trabalhou com diferentes noções da psicanálise lacaniana (Lacan foi o seguidor que mais contribuiu e deu continuidade à obra de Sigmund Freud, inclusive tentando explicar a razão de algumas pessoas buscarem viver suas vidas como se fossem do sexo oposto). Seu objetivo era contrapor o ponto de vista lacaniano mais corrente. Cossi reside em Campinas (SP) e participa da Escola de Psicanálise do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.

Segundo ele, no quadro do transexualismo, o sujeito contesta seu pertencimento ao sexo que seu corpo indica. A identidade sexual está em discordância com a anatomia e, muitas vezes, exige que esta seja reparada. A reivindicação de adequação do sexo pode vir acompanhada da exigência de retificação do nome, sua identidade civil.

“O sofrimento do transexual decorre da incoerência entre sexo e gênero. É comum, na literatura especializada, a consideração de que se trata de um fenômeno atemporal e presente em diferentes culturas. De fato, há muitos relatos, históricos e mitológicos, a respeito de indivíduos que adotavam o gênero que não correspondia a seu sexo e outros que chegavam até a se castrar”, conta. “Pensamos, contudo, que nestes casos não se tratava de transexualismo, tal como entendido atualmente”, diz Cossi.

O psicanalista diz que o transexualismo é um “fenômeno estritamente moderno”. Sua entrada no campo da medicina se dá pelo viés da patologia. Harry Benjamin, endocrinologista alemão que forjou o termo transexualismo em 1953, sustentava que o único tratamento que de fato beneficiaria tais pessoas seriam as intervenções hormonocirúgicas (cirurgias de mudança de sexo combinadas com tratamento hormonal). Robert J. Stoller, psiquiatra e psicanalista, tido como o maior especialista americano em transexualismo, trouxe o debate desse quadro clínico para o campo da psicanálise, assim como incorporou a ele a noção de gênero. Defendeu que a relação entre anatomia e identidade sexual é aleatória. “A não correspondência entre corpo-homem e gênero masculino e corpo-mulher e gênero feminino é como um distúrbio causado por uma disfunção no ego corporal quanto à constituição do senso de feminilidade, no caso do transexual masculino”, relata Cossi.

Já para Sigmund Freud (1856-1939), médico austríaco e considerado o pai da psicanálise, a formação de um gênero não estava determinada pelo sexo. As noções de masculinidade e feminilidade não eram para ele facilmente definíveis. Em 1905, Freud, no livro Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, declara que a bissexualidade é uma condição originária de todo sujeito. Todo ser humano apresenta um misto de traços de caráter masculinos e femininos. A bissexualidade psíquica seria então a condição originária que justificaria a escolha sexual na homossexualidade, por exemplo, assim como a possibilidade de o menino assumir ambas posições sexuais no Édipo: a posição masculina perante sua mãe e a feminina perante seu pai.

Segundo o psicanalista Cossi, tratar o transexualismo como uma singularidade de cada pessoa é entender a personalidade de cada uma delas e fugir dos estereótipos. “Transexual não é apenas a pessoa que solicita a cirurgia de mudança de sexo. Há homens que vivem como mulheres e mulheres que vivem como homens mesmo com o órgão sexual oposto. Eles lidam bem com isso e sentem que não precisam fazer a cirurgia. Para muitos, sua redesignação civil, a mudança de nome, já lhes é suficiente, assim como o reconhecimento e o respeito do outro”, diz.

O tratamento hormonocirúrgico não é, portanto, a única alternativa, pois não é imprescindível para todos. Afinal de contas, alterações anatômicas não transformam o sujeito num ser do outro sexo. Os tratamentos hormonocirúrgicos visam, em grande parte, retificações da aparência estética, mas não dão conta de toda a problemática na qual se debate o sujeito que solicita a cirurgia. O problema fundamental do transexual decorre de sua identidade sexual. Tanto é que o transexual também faz apelo ao direito, exigindo mudanças no seu estado civil, reclamando seu reconhecimento legal. Acima de tudo, ele quer ser dito como pertencendo ao sexo oposto.

Cirurgia no SUS
Segundo dados do Ministério da Saúde, são realizadas cerca de 30 cirurgias por ano de mudança de sexo na rede de saúde pública do Brasil, que oferece esse tipo de procedimento desde agosto de 2008. Apesar de serem realizadas na rede pública, as cirurgias não são gratuitas. Custam R$ 1,2 mil. De qualquer forma, uma soma bem inferior aos R$ 30 mil cobrados nas instituições privadas.

O procedimento até a cirurgia em si é longo e obedece os critérios estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina. O interessado em se submeter à mudança de sexo deve ser maior de 21 anos e precisa ter sido diagnosticado como transexual por uma equipe de psicólogos e psiquiatras. Insatisfação duradoura com o próprio sexo e o desejo expresso de eliminar os genitais são questões avaliadas pela equipe. A Organização Mundial da Saúde considera a transexualidade um distúrbio, e é essa caracterização que facilita o acesso à cirurgia.

Escola
A psicanálise lacaniana, hoje, não é considerada uma corrente freudiana, mas uma escola própria. Forjou-se como um sistema de pensamento que modificou inteiramente a doutrina e a clínica freudianas, não só elaborando novos conceitos, mas também inventando uma técnica de análise.


Mente humana

» Para basear seu estudo, o psicólogo Rafael Cossi recorreu a seis biografias de transexuais e trabalhou com quatro conceitos vinculados ao funcionamento comum da mente humana e que não se relacionam com a noção da rejeição: estágio do espelho; verleugnung (do alemão, "renegação"); semblante; e sinthoma.

» A fase do espelho corresponde ao narcisismo primário: é o primeiro momento da construção da identidade da pessoa, imaginária e que diz respeito ao nascimento do eu. A criança identifica-se à sua imagem produzida no espelho e toma posse do seu corpo a partir do que capta no olhar do outro. A imagem especular depende, então, da imagem que o outro lhe propõe. No transexualismo há um “momento de hesitação”, uma derrapagem do outro, que não aceita o sexo da criança: por mais que o sexo do bebê tenha sido reconhecido pelo outro, uma negação se produz. Tal imagem, ao mesmo tempo que é reconhecida, é negada, fazendo com que partes de seu corpo, justamente as que denunciam a que sexo pertence, não tenham sido erotizadas.

» A noção de verleugnung refere-se a um tipo específico de negação que se aproxima de negar a própria presença, de desmentir, agir contra a própria natureza. Como se o sujeito soubesse que aquilo que é rejeitado existe, mas continua a negar sua presença: o que é desmentido é a própria existência do objeto. "O transexual não alucina que seu corpo é o do outro sexo. Ele o reconhece de fato como é, mas nega isso e recorre às intervenções cirúrgicas para adequar sua anatomia à sua identidade sexual", explica o psicólogo Rafael Cossi

» O semblante relaciona-se à noção de aparência. "O transexual faz o semblante de que existem personalidades masculina e feminina claramente definidas e incorpora rigidamente uma delas. Por meio dessa atitude, quer se mostrar como uma mulher legítima presa em um corpo de um homem ou vice-versa. A encarnação desse estereótipo é condição fundamental para que o transexual possa ser reconhecido como tal e lhe seja permitido realizar a cirurgia de mudança de sexo", diz Cossi.

» O conceito sinthoma reconfigura, a partir dos anos 1970, a clínica psicanalítica lacaniana, esvaziando seu caráter patologizante. O psicólogo diz que os casos de transexualismo não devem ser encaixados automaticamente em padrões que, inevitavelmente, condenam os sujeitos que não se enquadram no modelo heterossexual ao campo da patologia.

10 comentários:

  1. Textos sempre perfeitos e super bem explicados.
    Beijooooooooooooo meu lindo em seu coração.

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  2. podem até existir muitos estudos, mas pergunto-me o que é que esses estudos tem ajudado a maioria dos seres, porque deve se ser tremendo esses seres devem de sofrer muito com essa diferença que sentem e o que fazemos se não estigmatiza-los, enfim sabes o que acho que continuamos a ser bem pior do que animais, o que achamos diferente do comum aniquilamos
    bjs

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  3. Ótima postagem Diogo.
    Gostei muito de todas postagens novas, comentei em todas.

    Você é 10.

    abraços

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  4. Muito bom este artigo, Diogo. Sua lucidez analítica é bastante louvável e admirável. Me informei de coisas que nem imaginava. Parabéns pelo seu trabalho pedagogico, além do literário, sempre muito bons. Meu abraço. paz e bem.

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  5. Ola meu lindo amigo Didier. Sabes que aprendo sempre algo quando por aqui passo, os teus trabalhos são muito bons, elucidativos, muito bem escritos.
    Pessoalmente lamento que se continue a descriminar pessoas, apenas porque as achamos "diferentes".

    Beijos para ti e um sorriso.
    Maysha

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  6. Valeu gente! é bom saber que posso contar com a participação de todos...bjoxxxxxxxxxxxx nos corações!

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  7. Primeiro parabenizá-lo pela primorosa contextualização q vc nos apresenta por aqui, sempre sobre temas relevantes ...

    Ssegundo agradecer o carinho por lá no Enfim ...

    Terceiro pedir desculpas pela ausência ... perdi o seu link e só agora me dei conta ... tudo restabelecido torno-me um visitante frequente ...

    Bjão querido

    Bratz

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  8. ahh que bom q vc gostou do novo visual do blog
    também adorei o seu layout novo :)
    bjos bom final de semana

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  9. Seu blog é uma viagem ao conhecimento, sempre bom ler e aprender...
    Forte abraço!

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