28 junho 2015

Meu filho Leandro - por Marcionila Teixeira




Leandro tinha apenas quinze anos quando cerrou os olhos pela última vez. Foi na noite da última terça-feira, em casa, no bairro da Bomba do Hemetério, no Recife. Amanheceu a quarta-feira com o corpo rígido, característica comum aos visitados pela morte. Familiares justificam a partida precoce. Leandro teria sido vítima de overdose. Uma mistura excessiva de loló com cola de sapateiro. Desta vez o adolescente não teria suportado a carga, facilmente encontrada nas ruas do Recife. Acessível desde sempre. Na época de Leandro menino.
Leandro era o cheira-cola na boca do povo. Também era chamado de monstro, até mesmo na escola. Não porque oferecesse algum perigo. Apenas tinha um afundamento no rosto, especificamente na testa, além do olho esquerdo deformado. Um dia Leandro me contou o motivo da sua aparência. Quando muito criança, havia caído em uma escadaria no alto do morro onde morava. Buscava a camisa levada pelas águas da chuva.
Soube de sua morte na noite da última quarta-feira. Foi através de uma ONG de Camaragibe, a Jovens com uma Missão (Jocum), por onde ele passou. Meu coração apertou. Lembrei das cenas vividas com Léo. Era assim que o chamava. “Tia, me leva pra tua casa hoje. Vai, tia, me leva”, dizia ao telefone. Logo pedia a meu marido para trazer Léo para mim. Quando eles chegavam em casa depois de uma aventura de moto, sentia uma alegria inexplicável. Léo me ofertou os abraços mais apertados da vida. Entende, Léo? Carinho.
Conheci o menino ainda aos 12 anos, devorando cola de sapateiro na noite do Pátio de São Pedro, no Centro do Recife. Me aproximei e perguntei se ele não queria me entregar a cola. Me disse que não. “Então você troca por um lanche?”, perguntei. Ele aceitou. Partimos juntos, eu, o marido e Léo, sentado no meu colo, dentro do carro. Em nenhum momento exigi ficar com a cola, segura firmemente entre as mãos do menino até chegarmos ao destino. Na frente da lanchonete, combinamos de deixar nossas drogas no carro – eu estava bebendo uma cerveja. Ele aceitou.
Léo estava com a roupa suja. Há dias estava fora de casa. Era assim sua rotina. Vivia entre as aventuras nas portas dos ônibus, o vício na cola, a vida “livre” nas ruas do Centro do Recife, as fugas de casa e de ONGs que tentaram “recuperá-lo” por diversas vezes. Por algum motivo, Léo não levava cola para seus finais de semana em minha casa. Nem loló. Léo era mais um filho, apresentado a toda a família. Lá em casa a gente estudava um pouco, ele brincava com meu filho, a gente saia para comer. Eu também gostava de cortar e lavar as unhas dos pés dele. Imensas e sujas. Amava o jeito que me olhava nessas horas, com os pés afogados na bacia cheia de sabão em pó.
Um dia a gente conversou sobre sonhos. Ele falou que queria ser jogador de futebol e casar, ter uma mulher para ele amar, cuidar dele. Após cerca de um ano de convivência a gente se afastou. Me acovardei diante do modo de vida de Léo. Durante a semana ele vivia sua liberdade fatal. Nos finais de semana, partia lá para casa. Tive medo das consequências dessa convivência. Certa vez Léo confessou para uma conselheira tutelar do bairro que gostaria de morar comigo. “Agilizo os papéis da adoção”, falou a mulher ao telefone. “Mas Léo tem família e eu também. Posso oferecer apadrinhamento, como tenho feito”, retruquei.
Nos últimos tempos Léo ainda me ligava. “É Leandro, tia”, falava ao telefone. Eu ficava feliz com a voz que desafinava – sinal de crescimento – a gente conversava e prometia um para o outro que nos encontraríamos em breve. Eram engraçados nossos encontros nas ruas. Ele com a roupa suja e descalço e eu voltando do trabalho. Havia quem se chocasse com nossos abraços.
Na manhã da última quarta-feira, visitei incrédula o Cemitério de Santo Amaro. Procurei o velório de número oito. Olhei, de longe, a placa com o nome do morto. Era Leandro mesmo. Caí num choro dolorido. No caixão, sua face, seus lábios tinham a cor pálida da morte. Segurei na mão da mulher de branco ao lado do corpo, a mãe dele. Conversamos rapidamente. Falei que gostava muito do filho dela. Ela me abraçou. Engraçado. Parecia o abraço de Léo.
Parti com um gosto amargo na boca. Pensando sobre a vida, a morte, os desencontros. Pensando como poderia ter evitado aquela partida. Só encontrei uma resposta. Perdoa, meu filho Leandro. Sou apenas mais uma a te negligenciar ao longo de tua curta vida. Penso que sempre podemos fazer mais. Perdoa…

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