28 março 2018

Nu semeia e nu ara e nu ceifa, quando para cada uma delas for hora. - Por Luís Henrique e Michel Chaves.



Na Antiguidade, a imagem se inseria, ainda mais profundamente que a escrita, na vida cotidiana, recontando narrativas míticas e familiarizando seus integrantes uns com os outros através de representações de situações idealizadas e vivenciadas. A visão da nudez, mesmo em imagem, por estar sempre pronta a despertar emoção erótica, parece dificilmente compatível com a suposta pureza da contemplação estética. Mas, sem dúvida, sem o poder de Eros, não haveria nem escultura, nem pintura. O interesse tão especial dispensado na arte à nudez do corpo humano é complexo, logo, impuro: para aqui convergem todos os instintos elementares, todas as pulsões obscuras, assim como todos os subterfúgios e todo o sucesso da sublimação. É por isso que o Nu é o tema artístico por excelência: motivo de fervor, oportunidade de entusiasmo e, às vezes, em certos casos cruamente realistas, sujeito à compaixão, objeto de repulsa fascinada, símbolo de obscenidade.
Durante a Idade Média europeia, dizem, apenas nos banhos públicos era permitido se mostrar sem roupa. Em qualquer outro lugar, nada de nudez. Não podia ser vista em lugar nenhum, nem mesmo na pintura. Quase que nada na escultura. A responsabilidade por esta privação costuma ser atribuída ao cristianismo. Ao contrário do paganismo helênico e romano que a precederam, esta religião, rigorosa e obstinada, pregou por mais de mil anos a depreciação do corpo, o desprezo pela carne e a proscrição da nudez. Tal é a reputação que lhe foi atribuída, e há, certamente, alguma verdade nesta ideia geral. Quando o homem e a mulher aparecem nus em certas representações medievais, pois isso acontece, percebemos que se sentem extremamente constrangidos. A nudez, nessa época, é antes de tudo a dos nossos primeiros antepassados, disformes, dignos de pena, depois do pecado. Em seguida, vem aquela dos condenados, que vemos cair no Inferno por ocasião do Juízo final. O corpo sem vestes é patético: corpo vergonhoso de Adão e Eva, corpo atormentado dos malditos; ou, então, o corpo supliciado do Cristo, e os corpos torturados, de vários modos, dos mártires. Não simplifiquemos: existe também, podia existir, nesses tempos austeros, uma nudez feliz, sinal de inocência, a gozar, com toda a candura, dos benefícios inauditos do paraíso terrestre. Mas a desgraça é sempre iminente. Como a Europa olhava para alhures de forma completamente exótica – para não dizer “estranha” – franceses e holandeses que retratavam nossa terra e seus primeiros habitantes, pintavam-lhes sempre na presença de frutas, cestos, tartarugas e tatus. Coisas que o europeu não conhecia. Mas isso não era fator de burrice por parte dos homens brancos. Ao contrário: o retrato da miséria da terra brasilis estava agora ligado ao nu.
Nos tempos da Idade Moderna, podemos ressaltar as duas visões completamente opostas sobre esse assunto: a pureza\inocência – já que foi citada - e a pobreza\selvageria. Para falar do primeiro ponto, é necessário que se faça um levantamento das características do Renascimento Cultural. Sabe-se que o controle da produção cultural e o poder ideológico eram detidos pela Igreja Católica desde o medievo e norteavam a vida dos europeus. Por isso, os valores teocêntricos que exaltavam o poder de Deus, bem como os preceitos do catolicismo romano, sempre preponderaram as produções artísticas até então. Porém, a reformulação do pensamento artístico e científico trazida pela Renascença Italiana mudaram completamente os modelos de fazer arte. Ao retomarem os apegos artísticos greco-romanos, os renascentistas como Michelangelo, Da Vinci e Rafael Sanzio, decidiram pintar homens e mulheres de uma forma que pudesse representar a pureza e o caráter divino dos seres humanos. Por isso, em obras como Davi, o homem sempre era representado com um pênis pequeno, pois, se, baseados no antropocentrismo e no humanismo, o macho se aproxima ou até mesmo é sua própria divindade, por que dar um caráter bestial a algo tão sacro¿ Não era vergonha na época do Renascimento mandar um “nude” se você era “bisquí”. Era divino.
A Renascença também trouxe avanços científicos e, não se pode deixar de destacar, o consequente desenvolvimento das artes náuticas. Em 1415, Portugal se lança no tão temido “Além-Mediterrâneo” para descobrir novas terras e angariar novas fontes de riqueza para a Coroa. 22 de abril de 1500, a tão “desconhecida” Terra de Vera Cruz passa a ser explorada e antes mesmo que se chegasse à beira da praia, “seis ou sete homens nus, sem qualquer vergonha andavam por ali”, como escreveu Pero Vaz de Caminha em sua carta. Retomando pensamentos tidos como “neoplatônicos”, o bom e o belo se interligavam pela pureza dos corpos de uma comunidade que não conhecia a fonte dos pecados sexuais, exatamente por não terem cognição daquilo que educava o europeu. O “índio” por não conhecer os preceitos do povo cabralino e, mais tarde, anchietano, andavam nus o tempo inteiro porque eram inocentes. Puros...não, não. Aí já é demais. Manuel da Nóbrega, em tempos de catequese, pedia a seus superiores em cartas “panos para cobrir as vergonhas dos selvagens desta terra”. O erotismo e a sexualidade não eram colocados aí. Apenas a inocência e, consequentemente, pela ausência da tardia educação cristã-europeia, uma visão transformada do nu: receptáculos muito fáceis de forças diabólicas.
Pulemos para a ponte da contemporaneidade e das pós-modernidade. A mulher, paulatinamente, cresce dentro da sociedade e com isso vem seu empoderamento: o grito mais audível referente a tal assertiva é o quadro “A liberdade guiando o povo”, obra que retrata a Revolução Francesa. O sentimento de ser livre é associado a uma mulher mostrando os seios. Eu vejo isso como um “nude”, afinal o que é um nude senão algo que choca, excita, anima, traz risada ou, até mesmo, vergonha? Ver a liberdade representada por uma mulher que expunha os seios é tudo, menos, conservador para a virada do século XVIII-XIX. Era o maior exemplo de como se viver sem ninguém – Igreja, Estado ou qualquer outra instituição – dizer que roupa você deve vestir ou SE deve vestir. Mulheres...tão estigmatizadas desde Eva e, por isso, maquiadas por uma falsa máscara de subversão, quando na realidade, são revolucionárias. O século XX esteve aí para nos mostrar que, mesmo num mundo dividido pelas incertezas do capital e do social, lá estavam as mulheres queimando seus sutiãs, andando nuas e dizendo “we can do it!”. Embora, em alguns casos, não terem ateado fogo nas suas peças íntimas, que nude inflamável, hein? O corpo e o nu, mais uma vez, representavam assim o novo, o poder e a vontade mais que possível de serem livres de qualquer opressão.
E Bauman já nos fala dessa sociedade líquida da pós-modernidade, na qual as coisas são fluidas como água e que, para o bem ou para mal, são aproveitadas. Com esse mundo, vem os smartphones, as redes sociais e, em especial, o Snapchat. Dois, três, cinco ou até 10 segundos de provocação podem ser liberados com um nude. Muitos se escondem atrás da tela do celular, já outros, sequer precisam disso. O nu, para muitos, ainda é motivo de vergonha. Para outros, mandar um nude é algo natural, excitante, engraçado...e, porque não, libertador para um passo além das câmeras. Os modelos que pintam o corpo estão aí também para provar que a nudez pode ter suas diversas faces em ganhar o pão de cada dia, afinal, é necessário materializar os discursos e “meu corpo, minhas regras”. Meu nude, então, oras. “Não se tem muito o que falar da nudez nos tempos atuais, afinal é algo tão banal”, dizem. Sorte seria se essa nudez fosse ligada à inocência e não fosse fonte de suplantar, abusar e desvalorizar o próximo. E a sociedade brasileira acha que está acostumada com o corpo nu por causa dos avanços cibernéticos e o por conta do próprio nude em si. Coitados dos brasileiros. Não falamos nem em sair sem blusa por aí, mas no dia em que – e o problema é seu se você não aceita e tenta mascarar a realidade rasteira do seu país – meninas andarem mostrando apenas a barriga ou usarem um short não forem alvos de violação...o nude, então, será fichinha e algo completamente normal. Sem medos, sem vergonha, sem abuso, sem nada...ops! Nude.
Os nudes são estupendos, sob vários pontos de vista. De um modo geral, para cada flash acionado, uma parte da obra foi escolhida. Foi isolada, ampliada e os filtros são usados. Essa focalização inabitual faz surgir vários detalhes nunca vistos, vários aspectos nunca percebidos dessa maneira. Ele, o nude, cria, de certa forma, seu objeto. E mais, em certos casos, o fato de o olho ter se aproximado produz algo de perturbador. O olhar está muito próximo de uma carne doce e firme. Não se poderia estar mais próximo de uma carnação milagrosa. Prestes a tocar a pele nua. E o que vemos? Depende.
E aí...manda nudes?

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