28 março 2018

Lolita – de Vladimir Nabokov



Sempre que leio um clássico da literatura universal, sinto como se não tivesse captado todas as nuances de suas páginas; como se fosse preciso regressar ao início e reviver aquela leitura para empreender algum conceito palpável a tudo o que deveria ter sido absorvido por mim e permanece flutuando em profusão na minha cabeça. Talvez seja esta a definição mais pungente de ignorância literária a qual fui capaz de esboçar até aqui. Evidentemente que este aparente fracasso interpretativo/compreensivo não se dá em todos os clássicos mas, sobretudo, naqueles que mimeticamente se aproximam da realidade espectral do ouvinte, ferindo-o, tocando-o, revelando os recônditos dos seus segredos mais obtusos, ou, no geral, autorretratando um panorama de passionalidade que muito se assemelha ao recriado pelo enredo, mesmo sendo necessário guardar as devidas proporções entre a obra e este humilde leitor. Decerto, a paixão ensandecida de Humbert Humbert pela Lolita resgatou profundamente em mim as nuances deste sentimento.

Vindo de relações mal sucedidas no Velho Mundo, Humbert se vê hipnotizado pela pequena Dolores Haze, uma garota de doze anos, que desperta nele os pensamentos mais lascivos, mas nunca levados a completude da cópula tradicional. Dessa alucinação, uma série de acontecimentos faz do cínico personagem, o lastimável sofredor, lânguido, determinado, sanguinário amante/padrasto/companheiro da garota. Seu cinismo merece relevante atenção porque dele deriva toda a empatia criada pelo narrador, numa controversa jogatina literária a qual nos faz compadecer diante da desfaçatez das atitudes de Humbert, tratando-o, a priori, não como um obsceno senhor de meia idade, abusador de menores – e que ao longo da narrativa ganha outros simulacros criminosos – mas como um louco apaixonado, irremediável em suas ações e nem por isso indigno de realiza-las. É como se a insolência dos atos infligidos aquela menina fossem menos importantes do que sentimento urgente vivenciado pelo personagem ora narrador em sua sofreguidão.

Não obstante, não podemos incorrer pelo risco que categorizar a obra em algum limiar estritamente erótico, como fora deveras feito em sua época de publicação. Eu mesmo calhei nesta falha mesmo antes de folhear as primeiras páginas do romance. Se serve de justificativa, meu engano se deve a forma como Lolita é perpassada por alguns leitores, editoras e o senso comum, todos desavisados sobre as tramas envoltas no livro, ou desrespeitosamente desvirtuando-a para, a partir de uma polêmica pífia, atrair mais vendagens ao clássico, artificio por si só vulgar, que provavelmente suscitaria a revolta do autor, caso este estivesse neste plano. O correto, porém, é afirmar que Lolita nem de longe passa a fazer parte de uma obra obscena, mesmo que olhares mais puritanos consigam encontrar indícios disso. É um romance de paixão e loucura, metáforas e clarezas, encontro entre mundos físicos, sociais e psicológicos, trazendo à tona uma profundo entendimento dos desejos humanos, não apenas os sexuais, mas também outros tão abstratos tanto, sem enveredar para os legados, às vezes clichês, das meras reflexões.

Das poucas obras lidas até agora, poucos livros me proporcionaram momentos tão risíveis quanto Lolita. Meu riso vinha naturalmente em várias passagens, ora de maneira incontrolável, ora por incômodo, por mero compacto de ideais, por desdenhosa similaridade com o que vivenciava o personagem; muitas vezes era um arquejar de dentes autômato, como se o autor quisesse arrancar do leitor alguma comicidade capaz de safá-lo do seu total impudor. Não entendam risos aqui como gargalhadas, analisando precipitadamente a obra como burlesca. Não seria verdade. O cômico funciona como justificativa, mais um dos muitos recursos de Humbert Humbert para permanecer a cabo dos seus planos amorosos, mesmo que para isso precise se utilizar de uma sutil comédia. Funciona. Em meio às barbaridades feitas pelo autor, esquecemo-nos temporariamente de suas ações quando somos confrontados por seu senso de humor, refinado, mordaz e definitivamente descarado.
Refinamento que se atribui também a linguagem. 

Uma das possíveis dificuldades que o leitor amador (eu me incluo neste bojo) vai encontrar são as constantes passagens em francês perfiladas pela obra. São muitas, desde pequenas frases até parágrafos inteiros escritos naquele idioma. Para os não familiarizados noutra língua, haverá uma ligeiro impedimento em compreender certos enunciados. Outros, porém, o contexto poderá ser de grande ajuda. Entretanto, mesmo sem uma ou outra alternativa, o leitor não ficará flanando sobre o enredo, pois sua totalidade nos dá material suficiente para que o entendamos. A questão vocabular foi outro ponto que me chamou muito atenção. Poucas obras lidas trazem um léxico tão rico em apenas trezentas e poucas páginas, sem necessariamente soar verborrágico, algo muito comum entre obras cujo pedantismo linguístico inibe o melhor entendimento da narrativa. Então, caso você não seja grande conhecedor da língua, mas apenas um amante dela, um caçador de códigos como eu, vai certamente aprender muito com a parte vocabular desse romance.

Seja como for, Lolita requer mais tempo de leitura e releitura. Acredito que essa será uma obra da qual eu terei de ler, reler e reescrever mais cautelosamente para merecer uma resenha da grandiosidade de sua inventividade. Por ora, o que está aqui é um esboço qualquer de um leitor canastrão, iniciante, como um adolescente que se delicia dos primeiros prazeres da vida sem saboreá-los parcimoniosamente. O que sei é que precisava expor as medíocres sensações despertadas em mim a partir da leitura dessa obra. Retomando a minha incapacidade de preencher todas as lacunas abertas pelos clássicos, percebo a cada leitura deles que estou perto do longínquo entendimento do quão importante é a literatura universal para a transcendência humana. Somos muito pequenos sem esta forma de arte, que nos desperta questões sensoriais incalculáveis. Talvez por isso sua imortalidade se justifique, não apenas pelos mecanismos literários ricos ou originais de seus autores, mas pela impecável capacidade de narrar em algumas páginas questões atemporais, que apenas mudam de cara, época e corpo físico, mas continuam vívidas em nossas essências selvagemente humanas a servir de inspiração.

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