19 abril 2015

A VIDA QUE VAI À DERIVA E O ABORTO VELADO - Por Marina Costin Fuser*

crianças
O Jesuíta Telhard de Chardin demonstra que o aborto sempre fora sujeito a controvérsias na tradição Cristã. Para ele, aquilo que entendemos por concepção católica sobre o aborto só entrou em vigor com o Papa Pio XI, clérigo que assumiu uma postura implacável quanto à saúde reprodutiva em 1930. Esta linha mais rigorosa da Igreja Católica passou a tratar a contracepção, a esterilização e o aborto como atentados contra a vida. Tal era o fardo da doutrina de Pio XI que sexo era reduzido a um ato com o único fim de procriar. Isso significou um retorno às trevas do período dos Inquisidores, como o Papa Gregório IX, que em 1230 decretou que o aborto e a esterilização fossem considerados homicídios, sendo a esterilização mais grave que o aborto por sua irreversibilidade e recusa absoluta em ter filhos. Também a masturbação era considerada um aborto, visto que ainda não se tinha uma visão clara sobre o sistema reprodutivo. Até o século XIX pensava-se que o espermatozoide era como um protótipo de ser-humano (homunculi). O Professor de Teologia e Ética na Marquette University nos EUA, Daniel C. Maguire (1), alega que a Bíblia não chega a condenar o aborto. O próprio John Connery (2) admite que “o feto não tinha a mesma categoria da mãe na lei hebraica”. (3) Maguire alega que as passagens bíblicas sobre o aborto são acidentais e esporádicas, e não atribuem um estatuto moral de pessoa ao feto. No século XV, o escrivão Tertulião fez alguma menção sobre o aborto, ao considerar a remoção e desmembramento de fetos em casos emergenciais no fim da gravidez como um mal necessário.
O teólogo conservador São Tomás de Aquino (4), que funda uma corrente bastante fervorosa na Igreja Católica desde a Idade Média, é adepto de uma doutrina considerada dominante entre os Católicos, que se baseia na teoria da “hominização tardia”. Segundo esta teoria, tão antiga quanto Aristóteles e Platão, a alma só viria a animar o corpo após o terceiro mês de gravidez. A alma passaria por três estágios de desenvolvimento: um estágio vegetal, depois animal, até que por fim viria a constituir uma alma humana. Segundo Maguire, “a ideia da ‘etapa hominal’ tardia persistiu ao longo da tradição católica.” (5) Na tradição de São Tomás, a prática de aborto não é considerada homicídio até concluído o terceiro mês de gravidez.
Entre médicos, esta polêmica também dá pano para a manga: entre o setor que defende que a vida tem início na concepção, e o setor que defende que a vida tem início na gestação, há ainda um setor intermediário, que defende que a vida tem início na formação do sistema nevrálgico, que corresponde ao fim do terceiro mês de gravidez. Por fim, a OMS acabou por adotar o conceito de Aquino, pois com um sistema nevrálgico constituído, o feto passa a sentir (e portanto pode ter uma alma). Isso coincide com o período em que um aborto não comprometeria a vida da mãe. A legalização do aborto se dá por entender que a saúde reprodutiva respeita a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo.
Na sociedade civil, há muitas opiniões sobre o aborto. Respeito a livre-expressão, mas receio que haja opiniões que decorrem de desinformação. É confortável citar Deus na hora de julgar os outros, na hora de condenar sua sexualidade, e dar pitaco no útero alheio. Mas o fato é que existe mais de uma religião, mais de uma concepção de Deus (ou deuses, entidades, orixás, etc.). Cada religião tem a sua interpretação sobre quando a vida começa. Em respeito a todas as religiões, não me atrevo a dizer que o Deus do Evangelho tenha mais valor que Alá, ou que Zeus, ou que Pacha Mama, ou que Buda, além de todo um Panteão de divindades que explicam o início da vida e a morte de formas distintas.
Porém quase todas as religiões defendem que julgar outros seres humanos por seus pecados seja tarefa do Divino (e correspondentes…). Não nos atrevamos a nos se elevar ao nível de Deus: cuidemos dos nossos, e deixemos que o Divino, a Deusa, ou os deuses realize(m) sua(s) obra(s). Filho não pode ser castigo por praticar sexo sem proteção. Após os 9 meses de uma gravidez indesejada, essas crianças são frequentemente abandonadas, e passam a ser vidas negligenciadas até mesmo pelos clérigos que as defendem com unhas e dentes antes da gestação. Afinal, quem tanto preza pela vida, deveria também defender a vida das mães.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (6), estima-se que anualmente são praticados 22 milhões de abortos clandestinos, deixando um saldo de 47 mil mortes decorrentes de abortos realizados por debaixo do pano. Das que sobrevivem, cerca de 5 milhões sofrem de transtornos mentais ou debilidades físicas. A OMS (7) avalia que nos países onde o aborto é permitido e acessível, os índices de efeitos colaterais são drasticamente reduzidos, e as mortes são praticamente nulas. Acaba de cair por terra o mito de que com a legalização do aborto, este viria a se tornar um método anticoncepcional: no Uruguai, país mais pobre que o Brasil, o Ministério da Saúde (8) acaba de anunciar que a taxa de desistência frente à interrupção da gravidez cresceu 30% entre 2013 e 2014.
Com efeito, no Brasil o aborto já é uma prática comum, realizada com relativa segurança por quem tem dinheiro para arcar com os custos das clínicas clandestinas. Em um artigo publicado no jornal O GLOBO (9), as jornalistas Carolina Oliveira Castro, Dandara Tinoco e Vera Araújo calcularam a partir de um levantamento de dados do DataSus que entre 2004 e 2013 foram realizados entre 7,5 e 9,3 milhões de abortos no Brasil. Ainda que o Ministério da Saúde afirme que em 2013 foram apenas 1.523 os casos de aborto previstos pela legislação brasileira (decorrentes de estupro, gravidez de risco ou anencefalia), as repórteres calcularam que naquele ano o número de abortos tramita entre 685.334 a 856.668. Das 205.855 internações consequentes de abortos – o SUS gastou cerca de R$ 63,8 milhões em tratamentos após abortos induzidos. No mesmo ano, os gastos com cirurgias de curetagem, ou seja, a extração da placenta e/ou do endométrio do útero, chegaram a R$ 78,2 milhões. No total, problemas decorrentes de abortos mal-realizados custam aos cofres públicos cerca de R$ 142 milhões.
A legalização do aborto foi uma conquista de mulheres de muitos países que foram às ruas para reivindicar o direito de decidir sobre seus próprios corpos. A legalização do aborto serve para impedir que pessoas com poder aquisitivo mais baixo não morram por práticas abortivas caseiras. É uma questão de saúde pública. As brasileiras das classes abastadas já abortam. Há clínicas de luxo para quem está apto a pagar. A legalização do aborto afetaria principalmente a saúde das mulheres que não têm recursos para sustentar uma criança.
Segundo o Conselho Federal de Medicina (10), no Brasil, o aborto é considerado a quinta causa de mortes maternas. A vida das mães que morrem decorrentes de hemorragias pós-abortivas parece não importar aos setores missionários/militantes “pró vida”. A vida das crianças abandonadas à Deus-dará após a gestação indesejada também não lhes parece comover, pois esses setores não têm compromisso com as vidas negligenciadas, crianças em situação de rua e pobreza. Se homens engravidassem, quem sabe o aborto já seria legalizado? O aborto masculino já acontece sem grandes frenesis, com o abandono paterno. O pior aborto é o abandono. O que mais me choca é que aqueles que pregam “contra o aborto em nome da vida” são os primeiros a negar a adoção de bebês por famílias homoafetivas. Esses infantes são abandonados por casais heterossexuais.
Também são estes “defensores da vida” a jogar a primeira pedra contra menores infratores, pressionando o legislativo pela redução da maioridade penal, que acaba de ser aprovada pela câmara dos deputados, rasgando, portanto, o estatuto da criança e do adolescente. Crianças, que frente à impossibilidade de um aborto, foram abandonadas e se tornaram menores de rua não contam com a proteção do Estado. A Secretaria de Direitos Humanos (11) divulgou que o índice de homicídios na adolescência ultrapassa o marco dos 42 mil, a saber: 42 mil adolescentes entre 12 e 18 anos correm risco de serem assassinados e o Estado acaba de negar proteção a uma grossa fatia desse setor mais vulnerável. A vida que vai à deriva só merece proteção quando dentro do útero.
Enfim, sou favorável à legalização do aborto pois sou a favor da vida: uma vida assistida, acolhida, com uma boa base de educação, saneamento básico, higiene, moradia, alimentos, brincadeira, afetos, ou seja: uma vida plena e pulsante.
* Marina Costin Fuser é Cientista Social, graduada e mestre pela PUC-SP, atualmente doutoranda em um programa interdisciplinar em Cinema e Estudos de Gênero entre a Universidade de Sussex e a UC Berkeley.
Referências:
2) Idem.
3) Idem.
4) Ver, p.e., São Tomás de Aquino, Summa Theologiae 1, q. 118,2 ad 2.
5) Idem.

Visto no: MARINAFUSER

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